O insone que amava estradas
À noite deambulava pela cidade pois não consegui dormir. Chegava a casa depois de mais um dia, bebia umas cervejas enquanto abria umas latas de conserva que lhe serviriam de jantar e ouvia Coltrane; para sobremesa fumava uns cigarros, de quando em vez deitava as mãos a uma erva, mas sempre se levantava, saindo por essa estrada fora... a pé. O problema de ter insónias é que, para além de nos sentirmos sempre cansados, fazemos coisas impensáveis aos olhos das pessoas que dormem como anjos.
Adorava a cidade que o tinha adoptado como a um filho pródigo, as suas luzes, o nevoeiro que se levantava de manhã no rio, as estátuas cobertas de merda de pássaro e principalmente a via-rápida com os vários acessos, que atravessava a cidade de uma ponta a outra. Aquele asfalto negro quebrado pelo traço branco, umas vezes amarelo, emanava um cheiro misto de óleo, borracha e sangue das colisões mortais.
O mais curioso era que nem sequer possuía carta de condução.
Sempre que podia atravessava a via-rápida durante essas longas noites, no sentido contrário ao dos carros, sempre em movimento. Parava às vezes para fumar um cigarro, ficando a ver o rolar do trânsito ou um despiste que tivesse ocorrido. Os fumos dos tubos de escape eram como nuvens apocalípticas que prediziam um futuro maquinal feito de metal e borracha em que o homem seria reduzido a mero espectador transportado.
A insónia induzia-o num estado de semi-consciência em que nunca estava realmente acordado. Tinha visões de bólides a cruzarem o asfalto tão rápidos que apenas se vislumbravam riscas de várias tonalidades; seres com esgares dantescos devido às velocidades estrondosas, olhos a saltarem das órbitas em consequência dos G’s atingidos nas curvas daquela estrada.
Aquela parte da cidade que era ao mesmo tempo tão distante e tão presente, era um mundo com vicissitudes que apenas ele verdadeiramente compreendia.
Detestava espaços com outras pessoas, não as compreendia, não suportava o barulho que faziam; o incessante grasnar das gentes frustadas da cidade. Preferia os decíbeis violentos dos cavalos do asfalto.
Muitas vezes acontecia-lhe adormecer deitado numa berma, qual bêbado sem eira nem beira; nunca conseguia adormecer nos braços de uma mulher, por mais curvas que o seu corpo tivesse.
O tronco que amava eram as várias ruelas empedradas na parte velha da cidade, os cabelos que o enebriavam eram as águas do leito do rio com os seus cheiros oleados por cargueiros que rumavam para cima e para baixo. As pernas com quem queria fazer amor eram as vias-rápidas que o circundavam e o abrigavam.
As suas mãos acariciavam sempre que podia as rugosidades de uma parede velha sem estuque, o traço contínuo da berma da estrada ou as falhas depressivas do manto negro a que era fiel.
Sonhava com a possibilidade de partir nessa auto-estrada, explorar todas as bifurcações que lhe aparecessem, enganar-se em todos os cruzamentos onde o diabo espreitava. Não se importava se não mais dormisse, se em troca pudesse disfrutar dos tapetes de alcatrão desse mundo.
Nesse sonho que nunca iria alcançar, conduziria um Mustang negro, vestido de roupas de cabedal que durariam toda uma vida, no rádio soaria Coltrane como se estivesse vivo, ao seu lado estaria uma garrafa de whisky, na sua mão um cigarro sempre acesso, respiraria dióxido de carbono em grandes golfadas que regurgitaria para a atmosfera, e rolaria sempre sem parar por essa imensa auto-estrada interminável.
Adorava a cidade que o tinha adoptado como a um filho pródigo, as suas luzes, o nevoeiro que se levantava de manhã no rio, as estátuas cobertas de merda de pássaro e principalmente a via-rápida com os vários acessos, que atravessava a cidade de uma ponta a outra. Aquele asfalto negro quebrado pelo traço branco, umas vezes amarelo, emanava um cheiro misto de óleo, borracha e sangue das colisões mortais.
O mais curioso era que nem sequer possuía carta de condução.
Sempre que podia atravessava a via-rápida durante essas longas noites, no sentido contrário ao dos carros, sempre em movimento. Parava às vezes para fumar um cigarro, ficando a ver o rolar do trânsito ou um despiste que tivesse ocorrido. Os fumos dos tubos de escape eram como nuvens apocalípticas que prediziam um futuro maquinal feito de metal e borracha em que o homem seria reduzido a mero espectador transportado.
A insónia induzia-o num estado de semi-consciência em que nunca estava realmente acordado. Tinha visões de bólides a cruzarem o asfalto tão rápidos que apenas se vislumbravam riscas de várias tonalidades; seres com esgares dantescos devido às velocidades estrondosas, olhos a saltarem das órbitas em consequência dos G’s atingidos nas curvas daquela estrada.
Aquela parte da cidade que era ao mesmo tempo tão distante e tão presente, era um mundo com vicissitudes que apenas ele verdadeiramente compreendia.
Detestava espaços com outras pessoas, não as compreendia, não suportava o barulho que faziam; o incessante grasnar das gentes frustadas da cidade. Preferia os decíbeis violentos dos cavalos do asfalto.
Muitas vezes acontecia-lhe adormecer deitado numa berma, qual bêbado sem eira nem beira; nunca conseguia adormecer nos braços de uma mulher, por mais curvas que o seu corpo tivesse.
O tronco que amava eram as várias ruelas empedradas na parte velha da cidade, os cabelos que o enebriavam eram as águas do leito do rio com os seus cheiros oleados por cargueiros que rumavam para cima e para baixo. As pernas com quem queria fazer amor eram as vias-rápidas que o circundavam e o abrigavam.
As suas mãos acariciavam sempre que podia as rugosidades de uma parede velha sem estuque, o traço contínuo da berma da estrada ou as falhas depressivas do manto negro a que era fiel.
Sonhava com a possibilidade de partir nessa auto-estrada, explorar todas as bifurcações que lhe aparecessem, enganar-se em todos os cruzamentos onde o diabo espreitava. Não se importava se não mais dormisse, se em troca pudesse disfrutar dos tapetes de alcatrão desse mundo.
Nesse sonho que nunca iria alcançar, conduziria um Mustang negro, vestido de roupas de cabedal que durariam toda uma vida, no rádio soaria Coltrane como se estivesse vivo, ao seu lado estaria uma garrafa de whisky, na sua mão um cigarro sempre acesso, respiraria dióxido de carbono em grandes golfadas que regurgitaria para a atmosfera, e rolaria sempre sem parar por essa imensa auto-estrada interminável.