Monday, January 03, 2005

O insone que amava estradas

À noite deambulava pela cidade pois não consegui dormir. Chegava a casa depois de mais um dia, bebia umas cervejas enquanto abria umas latas de conserva que lhe serviriam de jantar e ouvia Coltrane; para sobremesa fumava uns cigarros, de quando em vez deitava as mãos a uma erva, mas sempre se levantava, saindo por essa estrada fora... a pé. O problema de ter insónias é que, para além de nos sentirmos sempre cansados, fazemos coisas impensáveis aos olhos das pessoas que dormem como anjos.
Adorava a cidade que o tinha adoptado como a um filho pródigo, as suas luzes, o nevoeiro que se levantava de manhã no rio, as estátuas cobertas de merda de pássaro e principalmente a via-rápida com os vários acessos, que atravessava a cidade de uma ponta a outra. Aquele asfalto negro quebrado pelo traço branco, umas vezes amarelo, emanava um cheiro misto de óleo, borracha e sangue das colisões mortais.
O mais curioso era que nem sequer possuía carta de condução.
Sempre que podia atravessava a via-rápida durante essas longas noites, no sentido contrário ao dos carros, sempre em movimento. Parava às vezes para fumar um cigarro, ficando a ver o rolar do trânsito ou um despiste que tivesse ocorrido. Os fumos dos tubos de escape eram como nuvens apocalípticas que prediziam um futuro maquinal feito de metal e borracha em que o homem seria reduzido a mero espectador transportado.
A insónia induzia-o num estado de semi-consciência em que nunca estava realmente acordado. Tinha visões de bólides a cruzarem o asfalto tão rápidos que apenas se vislumbravam riscas de várias tonalidades; seres com esgares dantescos devido às velocidades estrondosas, olhos a saltarem das órbitas em consequência dos G’s atingidos nas curvas daquela estrada.
Aquela parte da cidade que era ao mesmo tempo tão distante e tão presente, era um mundo com vicissitudes que apenas ele verdadeiramente compreendia.
Detestava espaços com outras pessoas, não as compreendia, não suportava o barulho que faziam; o incessante grasnar das gentes frustadas da cidade. Preferia os decíbeis violentos dos cavalos do asfalto.
Muitas vezes acontecia-lhe adormecer deitado numa berma, qual bêbado sem eira nem beira; nunca conseguia adormecer nos braços de uma mulher, por mais curvas que o seu corpo tivesse.
O tronco que amava eram as várias ruelas empedradas na parte velha da cidade, os cabelos que o enebriavam eram as águas do leito do rio com os seus cheiros oleados por cargueiros que rumavam para cima e para baixo. As pernas com quem queria fazer amor eram as vias-rápidas que o circundavam e o abrigavam.
As suas mãos acariciavam sempre que podia as rugosidades de uma parede velha sem estuque, o traço contínuo da berma da estrada ou as falhas depressivas do manto negro a que era fiel.
Sonhava com a possibilidade de partir nessa auto-estrada, explorar todas as bifurcações que lhe aparecessem, enganar-se em todos os cruzamentos onde o diabo espreitava. Não se importava se não mais dormisse, se em troca pudesse disfrutar dos tapetes de alcatrão desse mundo.
Nesse sonho que nunca iria alcançar, conduziria um Mustang negro, vestido de roupas de cabedal que durariam toda uma vida, no rádio soaria Coltrane como se estivesse vivo, ao seu lado estaria uma garrafa de whisky, na sua mão um cigarro sempre acesso, respiraria dióxido de carbono em grandes golfadas que regurgitaria para a atmosfera, e rolaria sempre sem parar por essa imensa auto-estrada interminável.

Rasgo o Asfalto

"O mundo começa a desabrochar em feridas"

As rodas vão rasgando o asfalto do acesso à grande metrópole, o traço branco interrompido faz-me companhia assim como a voz do Mr. Mojo no amplificador do carro.
Às colunas que sustentam os vários acessos, falta-lhes bocados arrancados por intermináveis acidentes rodoviários. Há um cheiro contínuo a borracha queimada e a metal retorcido no ar. Dirijo-me nem sei bem para onde, rolo apenas pelo prazer de rolar; acendo mais um cigarro, bebo mais um gole da cerveja gelada que comprei numa loja de conveniência.
Poemas nocturnos despoletam no meu cérebro, bófias com aspecto de agarrados vêem-se aos pares dentro de modelos de automóveis já velhos e ultrapassados.
Vivo em toda a parte, caminho para cima ou para baixo, caminho em direcção à perdição ou redenção; sou um inconstante; vejam, vejam-me a mudar constantemente.
Até o sol nascer estarei sempre a rodar, sempre em movimento.

***

Meio-dia. Levanto-me cambaleante em direcção à casa de banho para vomitar; apenas sai líquido alaranjado, certamente influenciado pelas cervejas bebidas no decurso da noite anterior.
Faço a barba golpeando-me quatro a cinco vezes, dois deles bem profundos; ao menos assim tenho a certeza que o sangue pulsa dentro de mim; estou vivo embora não pareça.
Saio de casa, rodo a chave na ignição, o motor ronca feliz por poder mostrar mais uma vez o seu poder. Dirijo-me para o inferno do emprego, pela frente filas e filas de carros; é sempre assim a qualquer hora do dia nesta cidade velha. O cheiro a bifanas anda no ar, misturando-se com o do asfalto gelado pelas noites deste inverno rigoroso. O meu banco de trás esse cheira a charros dos buracos feitos pelos “brindes”, a cerveja e vinho entornados e a sémen e suor requentado de fodas com mais de cinco anos. Um pequeno haiku ressalta-me da massa negra que tenho na cabeça:
“Broches, minetes,
misturados com trompetes
frios cortantes”

Só penso na vinda do crepúsculo para poder ver os anjos perdidos da noite; coxas que se arrastam provocantes e que me farão vir quando se roçarem na minha pele nua… Até lá bebe-se umas, fuma-se outras; entorpece-se a mente com eflúvios e devaneios vários.

***

A chama do isqueiro lambe a ponta de mais um cigarro, nada mais se vê dentro do habitáculo; o cabedal das minhas calças roça na manete de mudanças, lá dentro algo cresce, algo procura um sítio quente e húmido para se esconder. Paro num bar para mais um shot e uma risca de coca, este leva-me directamente à estratosfera. Meto conversa com uma morena peituda e cuzuda; dá-me bola; vamos, vamos para outro sítio; vamos para dentro do meu carro, afinal ambos queremos o mesmo, queremos enquanto somos jovens e fascinantes, embora não o sejamos realmente.
Paro num beco, a língua dela chicoteia a minha, a sua mão não se fazendo de rogada, explora e conquista todo o meu corpo; agarra-me o pénis habilmente como o já fez tantas outras vezes. Sem dar por isso tenho-o dentro da boca dela, quase que expludo no momento mas consigo aguentar-me; ainda não é tempo. Puxo-a para cima de mim, não há tempo para grandes trabalhos de língua da minha parte; ela, aliás pede-me que o meta dentro dela. Por mais incrível que pareça, assim que o enterro vem-se uma vez, continuo, não sei como mas estou a aguentar-me, parece que tenho 18 anos outra vez; ponho-me em cima dela agarrando-lhe uma perna por cima do meu ombro, nem sei como o consegui fazer dentro do carro. Diriam se me vissem que agora vou em grande estilo, pareço um garanhão latino a sério, mas já não aguento mais, enquanto ela se vem mais uma ou duas vezes, rebento dentro dela jorrando tudo aquilo a que tenho direito.
Sugou-me 10 anos de vida, mas valeu a pena; sinto-me vivo e desperto. Trocamos números de telemóvel; ela na esperança de repetir uma façanha igual eu na certeza de que me vou esquecer do papel em qualquer lado e arrepender-me depois.

O ronco do motor acompanha o baixo da música –“Well I’m the Crawling King Snake and I rule my den…” enquanto rodo a mais de 130 km/h no acesso principal. Exaspero por um embate frontal, mas sei no meu íntimo que não vai acontecer nada. Apenas queimarei um pouco mais os travões e os pneus neste asfalto já gasto mas ainda negro como uma noite sem estrelas.
Os bares de putas acompanham-me no meu caminho de regresso a casa; dormirei hoje como uma pedra, talvez ao acordar não vomite. Talvez…